ALERTA: ESTE TEXTO CONTÉM IMAGENS QUE PODEM SER CONSIDERADAS PERTURBADORAS PARA ALGUMAS PESSOAS
Patricia está sofrendo de uma doença de pele inexplicada — mas um mal-entendido sobre o que pode ter causado isso desencadeou uma cadeia de eventos que transformou o pé dela em combustível para ativistas antivacinas.
A foto mostrava feridas roxas e vermelhas, inchadas e escorrendo com pus.
“Supostamente esta é uma participante dos testes (da vacina)”, dizia a mensagem ao lado. “Pronto para arregaçar as mangas?”
Em um dia, esses mesmos pés foram mencionados milhares de vezes no Instagram e no Facebook. A imagem viralizou no Twitter também.
“Veja que eles estão tentando nos prejudicar deliberadamente com a vacina”, dizia um tuíte.
Os pés pertencem a Patricia — uma mulher de cerca de 30 anos que mora no Texas. E é verdade — ela participou de um ensaio da vacina Pfizer e BioNTech. O imunizante começou a ser administrado na população na terça-feira (8/12) no Reino Unido.
Mas isso também é verdade: Patricia nunca recebeu a vacina propriamente dita. Os registros médicos mostram que ela recebeu um placebo, uma pequena injeção de água salgada. Os pesquisadores fazem isso como uma questão de rotina, para comparar os grupos que recebem um medicamento ou vacina com aqueles que recebem o placebo.
A doença dela não tinha nada a ver com injeções. Mas isso não impediu os ativistas de distorcer a história para promover suas próprias agendas. E além da dor física causada pela condição, Patricia precisa agora lidar com uma onda de ofensas virtuais.
De mal-entendido a meme
Patricia diz que sua doença começou no final de outubro, quando ela saiu para uma caminhada no frio com o marido e a filha pequena. Naquele momento, ela começou a sentir uma dor no pé esquerdo. O marido dela sugeriu que poderia ter sido causada pela fricção dos sapatos.
Mas quando ela chegou em casa, ela descobriu que a sola do pé dela estava dolorosamente inchada. Uma grande bolha apareceu, grande demais para ser causada por calçados. Era tão grande que ela precisou usar uma das fraldas da filha para cobri-la.
(Fotos das bolhas nos pés de Patricia foram usadas para alimentar as teorias da conspiração do coronavírus)
Quando a planta do outro pé também empolou e ficou difícil para andar, ela foi ao médico, que listou uma série de possíveis causas.
Uma das várias possibilidades que ele mencionou foi a erupção fixa por medicamento — uma reação ruim da pele a um medicamento.
Ela pensou imediatamente no teste da vacina para covid-19 do qual ela estava participando na época. Ela havia recebido a segunda injeção cinco dias antes das primeiras bolhas surgirem em seus pés.
Depois de ver seu médico, Patricia conversou com um parente que estava tão preocupado com ela que abriu uma vaquinha no GoFundMe para arrecadar dinheiro para despesas médicas.
Sob o sistema de saúde majoritariamente privado dos EUA, Patricia já estava lutando com custos médicos por conta de um problema nas costas. Agora ela teve que tirar uma folga de seu trabalho como assistente de arquivo por causa das feridas nos pés.
A descrição colocada na página GoFundMe fez uma ligação direta entre as bolhas e o teste da vacina. Dizia: “Patricia… foi voluntária em um estudo de vacina contra Covid-19 recentemente e teve uma reação adversa grave”.
Patricia diz que inicialmente concordou com o texto. Ela não percebeu como ele seria usado.
Como a publicação viralizou?
A história se espalhou rapidamente. Depois que um influenciador antivacinas o republicou, o texto acabou em vários lugares, incluindo um site cristão evangélico com tema de apocalipse que promove teorias de conspiração sobre vacinas, pandemia da covid-19 e as eleições nos EUA.
O site postou uma versão da história de Patricia junto com passagens da Bíblia descrevendo seus pés como tendo “crostas que se parecem muito com as ‘feridas dolorosas’ descritas no (livro do) Apocalipse”.
De lá, se espalhou para grupos do Facebook com temas religiosos e antivacinas em todo o mundo. Links para a história e a foto dos pés de Patricia viralizaram em romeno, polonês e português
CRÉDITO,FACEBOOK | Mensagem falsa publicada sobre o caso Patricia para incentivar pessoas contra a vacina
Efeito placebo
Conforme a notícia começou a se espalhar, os médicos da Pfizer e Patricia começaram a investigar a participação dela no teste da vacina.
Normalmente, os participantes não são informados se recebem uma vacina ou um placebo — essa informação só é revelada aos pesquisadores quando o estudo é concluído, para não influenciar os resultados.
Mas Patricia diz que, devido às circunstâncias incomuns, os pesquisadores e a empresa farmacêutica revelaram que ela havia recebido o placebo de água salgada, não a vacina experimental.
Confirmamos esse fato e consultamos vários dermatologistas independentes, que disseram que uma solução salina injetada em um braço não causaria o surgimento de um problema de pele no pé de alguém.
Depois de receber a notícia e perceber como a página bem-intencionada do GoFundMe tinha retratado o assunto, Patricia ficou arrependida.
“Tenho que assumir alguma culpa por divulgar minha história”, diz ela. “É a rede social. Você compartilha por um segundo e podem pegar e tornar viral.”
“Meu ferimento não teve nada a ver com a vacina. Desculpe. As pessoas cometem erros.”
O médico dela continua procurando a verdadeira causa por trás da condição dela.
CRÉDITO,FACEBOOK | Um dos primeiros posts a usar a página GoFundMe de Patricia para enviar uma mensagem antivacina
A propagação continua
Os fatos recém-revelados não contiveram a disseminação de informações enganosas.
Em uma semana, a história sobre o pé de Patricia alcançou os feeds do Twitter de britânicos que espalham teorias da conspiração sobre o coronavírus. Foi parar em grupos do Facebook focados no assunto, nos EUA e no Reino Unido.
E Patricia recebeu mensagens de influenciadores da pseudociência, procurando discutir a história dela em seus canais no YouTube.
Ela também recebeu uma avalanche de ofensas nas redes sociais.
Ela diz que as pessoas a chamavam de “uma idiota, uma viciada em drogas, uma criminosa condenada, vigarista, uma pessoa de caráter questionável e coisa pior”.
Ativistas antivacinas enviaram mensagens furiosas dizendo que ela nunca deveria ter participado dos testes. Ao mesmo tempo, outros enviaram mensagens abusivas acusando-a de alimentar deliberadamente a desinformação.
Patricia insiste que ela nunca teve a intenção de enganar ninguém. Ela desativou seus perfis das redes sociais por causa das mensagens e diz que está particularmente chateada com o lobby antivacinas.
“O fato de que esses anti-vaxxers (ativistas contra vacinas) estão usando isso para alimentar a agenda deles é irritante”, diz ela.
Arrecadando dinheiro
Patricia ainda tem contas médicas para pagar. Com a ajuda do parente dela, a página do GoFundMe — que foi brevemente removida pelo site devido a preocupações de que estivesse promovendo desinformação — voltou, e com o texto editado.
Desta vez, está escrito: “Patricia ainda está sofrendo de uma condição dolorosa na pele dos pés; no entanto, a causa não está clara”.
A GoFundMe ofereceu um reembolso a qualquer pessoa que doou dinheiro sob a falsa impressão de que o dano foi causado pelo teste da vacina. A página já arrecadou mais de US$ 5 mil (cerca de R$ 25 mil).
A história de Patricia é apenas um exemplo de um padrão recorrente. Ativistas marginais encontram uma história que parece amparar suas visões arraigadas sobre um assunto e trabalham para divulgá-la rapidamente na internet, independentemente da verdade dos fatos.
De sua parte, Patricia apenas “quer que isso acabe”. Ela espera que seu médico possa descobrir a causa de sua condição e que ela possa voltar ao trabalho em breve.
Fonte: BBC