Duas árvores de Natal enfeitam a calçada da avenida São João, bem embaixo do Minhocão, famoso viaduto no centro da capital paulista. Mas elas não fazem parte de nenhuma decoração planejada, seja da prefeitura ou de alguma empresa que usa o espaço público para fazer propaganda com o período natalino. Foram colocadas ali pelo carroceiro Ubiratan Cipriano, de 64 anos, que há dois mora naquele pedaço de rua.
Ele resgatou as árvores em uma lixeira de Higienópolis, um dos bairros mais ricos da cidade e vizinho ao Minhocão. “Acho que as pessoas compram árvores novas e jogam fora as antigas. Já peguei umas cinco só neste mês”, conta. Ele colocou uma em cada lado de sua barraca de camping azul, na calçada que divide com outras famílias. “Já que é Natal, vamos comemorar”, diz, sorrindo.
As árvores de Ubiratan são uma novidade nesse cenário habitual do paulistano: os baixios do elevado continuam tomados por pessoas em situação de rua, dormindo em barracas ou colchões velhos. E o ano novo não deve mudar esse ambiente — pelo contrário, é possível vislumbrar uma piora. Segundo pesquisadores da área, a pandemia de coronavírus, além da crise econômica, está fomentando o crescimento desse contingente.
Ainda não existem dados recentes sobre esse aumento, mas indicadores um pouco mais antigos já mostravam essa tendência. Entre 2015 e o ano passado, a população de rua cresceu 53% em São Paulo, somando 24,3 mil pessoas.
Já em âmbito nacional, um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estimou que 221.869 pessoas viviam nas ruas do Brasil até março deste ano — alta de 140% em relação a 2012. No entanto, esses números podem ser maiores, pois foram compilados antes da pandemia e levam em conta apenas cadastrados em programas sociais.
“Não existe um censo nacional da população de rua, mas apenas estimativas e contagens em algumas cidades. Sem conseguir mensurar o tamanho e as características desse contingente, fica muito difícil fazer políticas públicas que não sejam baseadas em preconceitos e estereótipos”, diz Juliana Reimberg, mestranda em ciência política pela USP e pesquisadora da área no Centro de Estudos da Metrópole (CEM).
‘Meu irmão derramou meu sangue’
São múltiplos os fatores que levam as pessoas às ruas. Segundo o censo da Prefeitura de São Paulo, 41% dos entrevistados apontaram “conflitos familiares” como motivo principal. Outros 26% culparam a “perda de trabalho”. Dependência de drogas ilícitas e álcool somam 33%. Perda de moradia, 13%.
A trajetória do carroceiro Ubiratan Cipriano é uma mistura de tudo isso. Ou, como ele mesmo diz: “Ninguém vem para a rua à toa”.
Nascido em Palmares (PE), ele chegou em São Paulo há 34 anos, fugindo de uma briga com parentes. “Foi uma confusão. Meu próprio irmão me deu dois tiros na perna. Ele derramou meu sangue. Vim embora para não derramar o dele”, conta. Em João Pessoa, onde morava na época, deixou a esposa: haviam se casado nove meses antes.
“Deixei uma casa pronta, montada. E minha mulher… nunca mais a vi. Não sei nem se está viva”, lamenta. Em São Paulo, foi peão de obra, pintor de paredes, funileiro e caseiro. “Trabalhei numa casa por 17 anos, mas tive que sair quando decidiram reformá-la. Não arrumei mais nada. Vim para a rua”, diz, sentado em frente a sua árvore de Natal recolhida no lixo.
“Para o ano que vem, eu quero uma moradia digna, uma casa, sair daqui. Eu arrumaria uma condução, voltava pra João Pessoa. Será que minha esposa ainda se lembra de mim?”.
Seu vizinho de calçada é Júlio (nome fictício, a pedido dele). De Alagoas, chegou em São Paulo com 18 anos — hoje tem 35. “Vim com a cara e a coragem, acreditando que iria me dar bem”, afirma. Mas, para ele, São Paulo entregou poucas promessas. “Fiquei desempregado, caí na droga e no álcool, e agora estou aqui falando com você”, diz.
Júlio também é carroceiro, mas semanas atrás um colega furtou seu veículo de trabalho enquanto ele dormia na barraca. “Na rua, tudo pode acontecer: até um amigo pode te trair e te roubar”, reclama. Uma carroça nova custa até R$ 800 no centro da cidade, montante que os trabalhadores demoram meses para juntar.
O carroceiro tem dois filhos adolescentes, mas ele não os vê há alguns anos. “Claro que sinto falta deles… Me afago na 51, na droga. Depois que saí de casa, minha família é quem está comigo, na rua. Se eu espero alguma coisa pro ano que vem? Não espero nada. Só volto se eu tiver alguma coisa pra mostrar…”
Covid-19
A Prefeitura de São Paulo diz que 345 pessoas em situação de rua foram diagnosticadas com a covid-19 de abril a novembro. Elas foram acompanhadas por servidores de saúde e programas sociais, afirma a gestão do prefeito Bruno Covas (PSDB). Desse total, 31 pessoas que foram hospitalizadas acabaram morrendo.
A gestão afirma ter criado 1.969 vagas em centros de acolhida durante a pandemia e que as equipes de Consultório na Rua e Redenção na Rua realizaram 144.855 abordagens, 26.997 consultas médicas e 55.973 avaliações dos usuários cadastrados no programa. Também diz que, na pandemia, ampliou a oferta de serviços de refeições, banheiros, kits de higiene e orientações a esse público.
Para Juliana Reimberg, do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), a política para essa população precisa congregar diversos setores, como educação, saúde, moradia e assistência social.
“Normalmente, o setor público afirma que criou vagas em abrigos como se a solução fosse só essa. Mas o problema é muito maior do que um leito para dormir. Há pessoas doentes, com problemas psiquiátricos, dependência química, desempregadas. Muitos são egressos do sistema carcerário, ou vítimas de violência doméstica, discriminação de gênero, sem perspectiva de vida”, elenca.
O próprio serviço de acolhimento é bastante criticado pela população de rua e por movimentos sociais da cidade. Embora 59,5% dos entrevistados pela prefeitura digam que os abrigos são “bons ou ótimos”, 20% disseram já terem sido vítimas de discriminação por parte de algum funcionário, 30% já ficaram sem receber alimentação e 34% relataram ter dormido em colchões sujos ou com insetos.
A prefeitura afirma que os centros de acolhida “têm suas estruturas higienizadas constantemente e são mantidos com as janelas abertas; nos quartos as camas foram colocadas em distância segura.”
‘O rapa que leva tudo’
Em outro ponto do centro paulistano, na Praça 14 Bis, dois homens e duas mulheres que vivem por ali aguardam o “rapa”, como é conhecido o serviço da prefeitura que recolhe o lixo e pertences “sem dono” aparente.
A praça 14 Bis, que tem esse nome porque chegou a abrigar uma réplica do famoso avião de Santos Dumont, hoje é coberta por um viaduto. Embaixo, dezenas de pessoas se amontoam em barracas. Em 2017, o local foi o primeiro a receber ações de zeladoria do programa Cidade Linda, do então prefeito e hoje governador João Doria (PSDB). Porém, as medidas de limpeza e pintura tiveram efeito apenas temporário: hoje há problemas com acúmulo de lixo, enchentes e vulnerabilidade da população de rua.
“A gente precisa ficar aqui, esperando pelo rapa, senão eles pegam nossas coisas e levam embora. Tenho minha carroça aqui, meu colchão, cobertor. Imagina se eu perco tudo isso, não posso dar mole…”, explica Anamando Gonçalves, de 49 anos.
Enquanto ele vive nas ruas da Bela Vista, sua mulher e três filhos dormem em um quartinho no centro.
“Só espero que no ano que vem eu possa ficar perto de quem eu amo, dos meus filhos. Espero não fazer mais nada de errado. Espero sair disso aqui e ter uma vida normal”, diz Anamando, preparando-se para mais um dia de trabalho com sua carroça.
Ao lado, Simone Cabral, 52, também espera o “rapa” para poder almoçar em paz. “Você não tirou foto minha, não, né? Tenho direito à minha imagem. Jornalista aparece aqui, tira foto da gente e pede: ‘você pode contar sua história?’. Conto minha história todo dia…”, diz.
Simone nasceu e cresceu na Mooca, bairro de classe média na zona leste de São Paulo. Ela vivia em uma casa alugada com a mãe. A família pagava o financiamento de um apartamento próprio, mas o prédio nunca ficou pronto e um processo judicial para reaver o dinheiro se arrasta há anos, diz Simone.
Há dez anos, sua mãe morreu e ela, desempregada e sem dinheiro, não conseguiu mais pagar o aluguel. “Pensei: ou pago aluguel ou compro comida. Foi assim que vim para a rua, e nunca mais consegui sair”, diz, enquanto caminha pelo Bixiga, tradicional bairro da região central, com destino a um restaurante popular na rua 13 de Maio.
Na bolsa, Simone sempre carrega um papel com seu cadastro na Cohab, companhia de habitação social da prefeitura. Ele foi feito em outubro de 2012, quando ela já estava na rua, mas até agora ela não teve resposta se conseguirá ou não uma moradia social para viver. Hoje, vive sozinha e tem pouquíssimo contato com os irmãos.
“É o que eu mais espero para o ano que vem: uma casa, um lugar onde eu possa ficar tranquila, porque a rua e essa cidade são uma grande produção de indigentes. E eu não quero isso”, diz.
‘Na rua te acolhem melhor’
Já na praça do Patriarca, um conjunto de decoração natalina foi montado ao lado de dezenas de barracas de moradores de rua, que dormem embaixo de uma marquise desenhada pelo renomado arquiteto Paulo Mendes da Rocha. As bonecas de pano e árvores com bolinhas coloridas — todas cercadas por grades para que não haja depredação — fazem parte do “Festival de Natal” da prefeitura, cujo tema é “Um sonho de cidade”.
Em uma das barracas vive Samara Lohanny, de 27 anos, uma mulher trans que parou ali há um mês. De Maceió, ela chegou em São Paulo há dois anos. “Eu apanhava muito do meu irmão e de um tio, que não aceitava eu ser trans”, conta.
Uma amiga a convenceu a se mudar para São Paulo, com a promessa de um emprego em uma casa de prostituição no bairro da Liberdade. “Foi um inferno. A cafetina me explorava muito. Eu tinha que pagar uma taxa para ela e, com o tempo, tudo o que eu ganhava era usado para pagar essa dívida. Tive que sair”, conta.
Nos últimos anos, Samara participou de um programa da prefeitura para pessoas trans. Conseguiu se formar no ensino médio e, com auxílio financeiro, alugou um quartinho no centro. Mas o dinheiro acabou: sem oportunidade de trabalho, foi para a rua, conta.
“É impressionante como as pessoas que vivem na rua às vezes te acolhem melhor do que sua própria família. Não é fácil ser trans, não sou um monstro. Mas nunca perco a fé. Sou católica, estou sempre com Deus. No ano que vem espero sair daqui, ter um canto pra ficar com meu marido. Por pior que seja a pessoa, ninguém merece viver na rua”, diz.
Fonte: BBC