Da Itália ao Brasil, reality shows mexem com o psicológico dos participantes e, ainda mais, do público.
No dia 14 de setembro de 2020, um grupo de personalidades relativamente conhecidas na mídia da Itália se reunia pela primeira vez numa casa nos arredores de Roma para ficar em confinamento durante quase seis meses. Era o início do Grande Fratello Vip, a versão italiana do Big Brother. Mal sabiam os produtores da Mediaset, grupo de mídia dona do Canale 5, emissora que transmitia o programa, que aquela quinta edição do reality show ganharia proporções mundiais, repercutindo em mais de trinta países e formando uma legião de fãs dispostos a traduzir boa parte do conteúdo para idiomas como português, espanhol, inglês, francês e até árabe.
O sucesso do programa poderia ser explicado pela magnífica produção do Canale 5, pelo formato criativo do reality que o diferencia de boa parte dos Big Brothers ao redor do mundo ou pelas ações de isolamento social que forçaram boa parte do planeta a permanecer em casa assistir mais TV. No entanto, sem qualquer sombra de dúvida, a magia estava em seus participantes, complexos, geniosos e carismáticos, que roteirizaram uma história de dar inveja a qualquer novela do Brasil ou do México.
Entre esses participantes estava a modelo brasileira Dayane Mello. Há dez anos na Itália, ela já havia participado de outros programas de televisão, entre eles as versões dos realities No Limite e Dança dos Famosos. Natural de Joinville – SC, Dayane teve uma história de vida no mínimo complicada. De infância bem pobre, foi forçada a pedir esmolas na rua com menos de 5 anos de idade e conviver com o abandono materno. Aos 16 anos, foi morar sozinha no Chile, onde iniciou sua carreira de modelo.
Já na casa do Grande Fratello VIP, Dayane se notabilizou por inúmeras polêmicas e conflitos. Em diversos deles, a brasileira ouviu insultos indefensáveis, como a de que era mulher ‘para apenas uma noite’ ou que ‘em Verona (cidade ao norte da Itália) ela seria estuprada’. Sua personalidade forte não deixava barato e, na mesma proporção em que ouvia desaforos, a modelo atacava.
A sua principal rival nas discussões, embora não fosse a autora de nenhuma dessas frases infelizes, era a atriz Stefania Orlando, de 53 anos. Do começo ao fim do programa, Dayane votou para eliminar Stefania – e a recíproca foi verdadeira. Em um dos desabafos, a brasileira, que tem 32, perdeu a mão buscou desqualificar Stefania por conta da idade. Mais tarde, pediu desculpas e disse que pretendia chegar aos 53 na mesma forma que a concorrente. Ambas chegaram à final e terminaram a edição num clima pacífico.
Esta situação de conflitos e suposta discriminação fez com que, cada vez mais, os brasileiros se envolvessem com a audiência do programa e passassem a votar em massa cada vez que Dayane era indicada ao televoto (o paredão deles). Em 11 berlindas, a modelo se salvou de todas. É difícil, no entanto, mensurar até que ponto a participação dos brasileiros na votação fez diferença. De qualquer forma, o episódio serviu para que os simpatizantes de Stefania e principalmente do participante Tommaso Zorzi, vencedor da edição, se mobilizassem e criassem um movimento contrário à participação dos brasileiros. A guerra virtual foi ganhando forças e ultrapassando fronteiras. Sucessivas mudanças no sistema e nas regras de votação para dificultar o acesso de estrangeiros e não falantes da língua italiana foram adotadas pelo Canale 5.
Mas este fato está longe de ser a principal história do Grande Fratello Vip. Boa parte do mundo também se envolveu para acompanhar uma das relações mais intensas que já ocorreram entre dois participantes de reality show no mundo: a da própria Dayane Mello com a atriz e cantora Rosalinda Cannavò, de 28 anos. As duas belas moças passaram meses grudadas. Compartilhavam a mesma cama, trocavam olhares apaixonados, carícias, incontáveis abraços, beijos e inúmeros selinhos, numa espécie de romance que efervesceu a comunidade LGBT pelo mundo e que criou um fã-clube internacional, o Rosmello, com membros principalmente no Brasil, Itália, Espanha e EUA.
Ocorre que, se a história de Dayane já não era simples, a de Rosalinda conseguia ser ainda mais complexa. Vítima de violência sexual aos 12 anos de idade, a atriz lutou durante muito tempo contra a anorexia e se envolveu em relacionamentos que claramente a prejudicaram. Teve um namoro de faixada com o ator e modelo Gabriel Garko, que se assumiu homossexual para toda a audiência do Grande Fratello ao visitar Rosalinda na casa, numa cena que envolveu muito choro das duas partes.
Rosalinda nem sequer entrou na casa com este nome. Sua participação começou como Adua Del Vesco, codinome artístico. Ela, porém, diz que iniciou um processo de autoconhecimento no programa que a fez voltar a ser Rosalinda. Neste mesmo processo, terminou um namoro de quase 10 anos com Giuliano Condorelli, durante uma visita dele à casa. Nesta época, todo o mundo já contava que ela estava envolvida com Dayane.
Rosalinda também foi de extrema importância quando, no início de janeiro, a modelo brasileira recebeu a notícia da morte do irmão caçula, Lucas, num acidente de carro em Santa Catarina. As imagens de Dayane aos prantos envolvida pelos braços de Rosalinda correram o planeta e deram contornos ainda mais dramáticos à edição. De fato, a atriz italiana foi essencial para que a brasileira permanecesse no programa e, no fim de janeiro, garantisse passaporte para a final no dia 1º de março.
Mas o que tinha tudo para ser uma belíssima história de amor entre duas mulheres aos poucos foi se tornando uma autêntica tragédia grega. Brigas cada vez mais frequentes entre as participantes, ciúmes, estratégias de jogo diferentes, falta de afinidade com as mesmas pessoas e, sobretudo, o súbito interesse de Rosalinda por outro competidor, o modelo Andrea Zenga, foram afastando as duas, que, diga-se de passagem, nunca assumiram qualquer romance publicamente. Preferiram definir tudo como uma amizade bem intensa.
As desavenças tiveram seu ápice poucas semanas antes da final, quando, logo depois de declarar seu ‘amor’ por Rosalinda, Dayane a indicou ao televoto. Justiça seja feita com a modelo, ela precisava escolher entre enviar um casal de amigos ao paredão ou mandar Rosalinda junto com Stefania. Rosalinda reagiu muito mal à indicação, cortando relações com Dayane. No dia da eliminação, o programa ainda tentou fazer uma média entre as duas, colocando-as lado a lado para assistirem um VT com seus melhores momentos dentro da casa. Poucos dias depois, quando Dayane saiu, o apresentador ainda tentou quebrar o gelo entre as duas com um abraço nitidamente a contragosto.
Os dias que se seguiram ao fim do Grande Fratello VIP evidenciaram o poder dos realities show no público. Os fãs ao redor do mundo continuaram a consumir hostilidade e a relação entre as duas ex-participantes, mesmo elas já vivendo em realidades completamente diferentes. Uma postagem de reaproximação de Rosalinda dedicando alguns versos à Dayane no Instagram, no dia em que seria o aniversário do irmão da modelo, fez chover uma chuva de críticas e ofensas à atriz. Contudo, entrevistas posteriores levam a crer que elas serão boas amigas daqui para frente, como o mundo real requer. E muitos, talvez a maioria, ainda torcem para uma relação amorosa ali.
Mas o que explicaria tamanha comoção e envolvimento com pessoas antes quase anônimas e que nem sequer sabiam de sua popularidade antes de sair do confinamento? Diversas teorias e estudos existem sobre o assunto. Mas, antes de entender este ponto, é importante mensurar o grau de emoção que os reality shows trazem aos telespectadores. E o melhor exemplo é o Big Brother Brasil, da Rede Globo.
O programa começou no fim de janeiro. De forma oportuna, a emissora utilizou a história de Dayane Mello no Grande Fratello Vip como estratégia de marketing, inclusive com matéria sobre a modelo no Fantástico. Mas o BBB já reservaria grandes histórias por si só, as principais envolvendo o jovem ator Lucas Penteado.
Na primeira semana, Lucas conseguiu se envolver em muitas polêmicas, sobretudo quando bebia. Sugeriu divisão no jogo entre homens e mulheres, entre negros e brancos, insinuou que haveria racismo envolvido no fato de outra participante não querer ter uma relação com ele, teve uma postura intimidatória contra ela, assumiu-se bissexual e teve um caloroso beijo com o participante Gilberto.
Seu comportamento destemperado despertou indignação de quase todos os outros competidores, que reagiram de forma desproporcional. O rapaz foi humilhado pelo grupo, sua bissexualidade foi posta em dúvida, ouviu xingamentos dos mais variados tipos e foi excluído por quase toda casa. Os mais eloquentes no mau tratamento a Lucas foram a cantora Karol Conká, o comediante Nego Di e o rapper Projota. A situação fez o país inteiro refletir sobre a cultura do cancelamento, muito presente nas redes sociais, quando uma pessoa comete um erro e, por conta disso, recebe um linchamento virtual desmedido. Essa cultura não é nova, inclusive já foi tema de capa desta revista em 2011. Só agora, porém, a discussão ultrapassou as barreiras da internet.
Segundo pesquisa da Hibou, empresa de monitoramento de consumo, com mais de dois mil respondentes, 87% dos brasileiros acredita que sim, o que aconteceu dentro da casa do BBB21 foi cancelamento. Dos 52% dos brasileiros que acompanhavam o reality em fevereiro, quando ocorreram os episódios com Lucas, 86% sentiram emoções negativas fortes, em ordem de expressividade, sendo os mais comuns os sentimentos de raiva, tristeza, preconceito, humilhação, indignação, nojo, repúdio e falta de empatia. Não à toa, os participantes Karol Conká e Nego Di foram eliminados com cerca de 99% dos votos e continuaram recebendo represálias ao saírem da casa, além de várias ameaças. Outra situação que mostra a dificuldade do público em separar o entretenimento da vida real.
A mesma pesquisa quis saber, então, por que o brasileiro assiste ao BBB. De maneira geral, sobre o entretenimento que esse tipo de programa proporciona: para 51,4% o que chama mais atenção é a possibilidade de bisbilhotar o comportamento das pessoas, 49,4% gosta dos conflitos por opiniões e atitudes distintas. Uma fatia de 25,3% diz que relaxa assistindo ao programa, enquanto 19,9% assiste para ter assunto com os amigos e 19,6% simplesmente acompanha a rotina do dia a dia na casa. Por fim, 8,5% fica de olho nos casais que se formam.
Agora, para explicar a origem de todas essas emoções, é preciso um olhar mais atento para a parte psicológica. O psicólogo turco Lemi Baruh começou a investigar os espectadores de reality shows a partir de parâmetros de voyerismo. Teoricamente, segundo ele, as pessoas podem ter tendências voyeurísticas em que aproveitam qualquer chance de ver “o que de outra forma não poderiam ver” quando “as cortinas estão ligeiramente abertas”. Em outras palavras, os espectadores podem apenas gostar ver os bastidores de muitas situações da vida, que frequentemente retratam suas próprias rotinas. No entanto, Baruh distingue esse tipo de voyeurismo do voyeurismo sexual, muito associado à palavra e a um transtorno psicológico.
Outro apelo dos reality shows é a chance que eles fornecem de comparação com outras pessoas envolvidas em situações “em que gostaríamos de estar ou ficamos felizes por não estarmos”. Neste sentido, o espectador sonha em estar no lugar do participante quando alguma coisa boa acontece, mas também fica aliviado por não precisar passar por toda a fase de preparação e esforço que precedeu o momento de brilho.
O envolvimento com este tipo de entretenimento é tão grande que mesmo quando o programa acaba ou o competidor é eliminado, o espectador ainda se sente motivado em saber a continuação daquela história de vida. De dez anos para cá, com a popularização das redes sociais, esta tarefa ficou mais fácil. Só que, neste caso, existe a possibilidade da interação. É uma situação que perdura durante meses até que todos voltem à sua rotina normal e o que ocorreu no programa caia no esquecimento assim como ocorreria com a história e personagens de uma novela.