Cultura e Entretenimento

Que as Dores se Transformem em Cores

Análise da obra do escritor e publicitário Henrique Alberto de Medeiros Filho feita pela professora, poeta e ensaísta Ana Maria Bernardelli.

O livro “Que as Dores se transformem em Cores”, de Henrique Alberto de Medeiros Filho, publicado pela Editora Letra Livre, é um exemplo de quem vivenciou os tempos da contracultura nos idos de 1969. Vê-se um poeta com “cores” de Gilberto Gil, Caetano, Chico Buarque e impressionado pelos incomparáveis João Gilberto, Tom e Vinicius, dos irmãos Campos e dos tempos de convivência entre vanguardas anticanônicas, pós-vanguarda e pós-canônicos. De todos eles ficaram marcas de um espírito excepcionalmente original, livre, apurado, elegante.

Nos poemas, é inevitável que fatos históricos e conceitos filosóficos advindos da época se revelem. As angústias, os questionamentos, as reflexões expressas nos versos são frutos do amadurecimento de quem vivenciou um mundo em revolução. Os tempos eram convulsionados por conta da ditadura e  havia uma modernização popificada. Tropicalismo, contracultura, poesia marginal, o mundo dos universitários roqueiros. O mundo pop, fenômeno global, “contra o sistema”.

E esta revolução desencadeou posturas poéticas revolucionárias contra o conservadorismo acadêmico, como expressam os versos:

“…é preciso improvisar o novo

como razão de ter que continuar

o que se imobilizou” in improvisando o novo

A Poesia exige do poeta que coloque a seu dispor corpo e alma, como uma liberação de passado, de vidas vividas, de ações terminadas e interrompidas, de visões futuras e consciência do presente real. HM não foge a essas exigências. Seus poemas seguem as determinações da Poesia e daí surgem plenos dos mistérios das coisas, como resultado da contemplação e da própria vida do poeta.

“…neste universo paralelo

não tenho buscado

transpor limites

decifrando

sabendo separar

sonhos

mistérios

fantasias

tão longe

tão perto…”in universo paralelo

Nota-se na poesia de HM resquícios do que se denomina uma “literatura de exaustão”, timbrada pelo escritor americano John Barth. Porém, HM dribla essa barreira reforçada pela crença de que os poetas magistrais já haviam dito tudo que era preciso. Corajosamente enfrenta o novo! “Improvisa o novo”!

“…o mundo não para de girar

gente para cá e lá

angústias obsessões compulsões

individualidades plurais desiguais

o amanhã às vezes me cansa.”in amanhãs

HM encontrou seu caminhar e seus poemas se configuram com efervescência poética marcada com um “dark side” – espaço alternativo de catarse, de uma busca do inusitado, do choque, da experiência substancial da palavra.

Sua linguagem pode parecer atrevida, insolente, insultuosa, mas é trabalhada de modo intencional, a fim de atingir os efeitos semânticos desejados que despertam um prazer sensorial pela sua própria articulação e apresentam significações insuspeitadas.

“…sou uma bomba-relógio

e não pretendo machucar ninguém

o que vai ficar

depende daquilo

que um dia foi

ou fui.” in bomba-relógio

Não se pode esquecer que a linguagem em HM tem a materialidade linguística cuidada quanto à sonoridade, ao ritmo, às rimas, às aliterações etc.; a junção dos significados e dos significantes configura-se em harmoniosa cumplicidade.

Em relação à sonoridade, uma afirmativa: todo poema é basicamente uma estrutura sonora que marca sua individualidade. A sonoridade do poema pode ser regular, perceptível, ou discreta, comedida como é o caso da poesia de HM.

As palavras em versos possuem fonemas que despertam sensações ou emoções e que determinam a expressividade dos sons da correspondência entre som e um sentido necessário.

Um exemplo desse aspecto, segundo teoria do foneticista Maurice Grammont:

 

“ voar

 

não é só para os pássaros

é para todos aqueles

que conseguem sonhar.”in voo

Percebe-se em todo o poema a presença da letra S em oito sílabas poéticas. Num poema construído quanto a uma das mais antigas aspirações humanas – voar –tem no efeito aliterativo a repetição do S que sugere o som sibilante dos voos rasantes das aves no ar e da atmosfera e as sensações do sonho. Pode-se dizer também da combinação do efeito sonoro com a disposição gráfica (verbo voar bem acima do corpo do poema).

HM não tem reserva em usar formas tradicionais do verso e modificá-las e/ou inventar novas para seus poemas. Sua obra se reveste de ousadia formal e liberdade.

 

“o mundo

me consome

e eu, o mundo

olho

        olhos

        coisas

sinto…”in consumo

A ausência de rimas não elimina a expressividade do poema, visto que é o ritmo o elemento de expressão. Juntos, ritmo – unidade sonora e palavra – unidade conceitual, formam a integridade do verso que por sua vez é a unidade do poema aliada às demais unidades.

Quanto à temática, assim como a linguagem, envereda por caminhos inesperados em se falando de sensualidade, erotismo, situações de sombras extremas. A dramaticidade, o trágico, a visão corrosiva da realidade, a ridicularização das mazelas sociais, das crenças e valores, o insólito, o grotesco, tudo numa alusão às temáticas de Nelson Rodrigues.

Há na sequência de poemas com temas reincidentes, o que não interfere na qualidade poética, pois a cada retomada há aprofundamento e “cores” novas na temática vista. 

“ … momento frágil

                    como a fantasia

                              o corpo

a consciência

o medo

a coragem…”in disputa de pares

 

“situações de medo

não se resolvem com preces

benesses perdões castigos…”in imponderável

A extensão é de intensa variedade – ora longos, ora curtos; ora divididos em estrofes, ora contínuos. Interessante essa liberdade de composição tendo em vista que as escolhas estruturais estão adequadas à tensão de cada poema.

HM é poeta para o leitor reflexivo. Sua poesia é dual: imanente e transcendente; intelectual e sensual; prospectiva e retrospectiva; concreta e abstrata. Tais pares dão à obra uma grandeza fecunda seja no trabalho/arte, seja na inspiração e nas escolhas que muitas vezes acarretam angústia e serenidade.

 

 

De: Ana Maria Bernadelli