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Sem acordo com empregadora, MPT-MS vai à Justiça para reparar danos a 15 trabalhadores resgatados em condições degradantes

Grupo foi recrutado em cidades do interior do estado e em Bella Vista Norte, no Paraguai; vivia em barracos de lona, dormia em camas feitas com tábuas e fazia necessidades fisiológicas em buraco .

Ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul (MPT-MS), no início deste mês, pretende regularizar o pagamento de verbas rescisórias a 15 trabalhadores resgatados em situação análoga à de escravo na zona rural de Nioaque, município distante cerca de 180 quilômetros da capital Campo Grande. Conforme investigações, as vítimas laboravam na catação de pedras e raízes, para plantio de soja; entre elas, havia menores de 18 anos de idade e imigrantes de origem paraguaia.

A ação, protocolada na Vara do Trabalho de Jardim, baseia-se em irregularidades constatadas no curso de diligências feitas em dezembro do ano passado, pelo Ministério Público Estadual, pela Polícia Civil, por peritos em Engenharia de Segurança do Trabalho do MPT-MS e, posteriormente, por auditores-fiscais da Superintendência Regional do Trabalho. O processo também encontra alicerce em robusta prova documental e em depoimentos prestados pelos empregados à Delegacia de Nioaque.

Como forma de solucionar a grave lesão à dignidade de trabalhadores, seja em função das precárias condições laborambientais, seja pelo inadimplemento do montante que deveria ser repassado em contrapartida pelos serviços prestados, o procurador do Trabalho Odracir Juares Hecht pede o pagamento aos trabalhadores de R$ 71.286 relativos às verbas rescisórias, atualizadas monetariamente. O pleito, porém, observa Hecht, não inviabiliza uma eventual complementação pela via reclamatória individual, que compense as singularidades dos danos suportados por cada trabalhador.

Em outra frente, a título de dano moral individual, o MPT requer a condenação da ré ao pagamento de R$ 36 mil para cada empregado, correspondente a 20 vezes o último salário contratual, estimado em R$ 1,8 mil. Por fim, pela lesão causada à coletividade, a instituição pede que a sociedade seja indenizada no montante de R$ 500 mil, que será revertido ao Fundo de Amparo ao Trabalhador ou a outra entidade social a ser definida em sede de execução.

“Frise-se que não busca o Ministério Público do Trabalho, em sua atuação, inviabilizar as atividades de qualquer pessoa. Entretanto, o valor deve ser de tal monta que surta algum efeito no patrimônio da empresa, como modo de garantir o caráter punitivo, com função repressiva e dissuasória. No dano moral coletivo, exsurge ainda mais um aspecto, qual seja, a função preventivo-pedagógica”, justifica Hecht, ao ponderar que a quantia proposta foi calculada levando em consideração o elevado porte econômico da ré, a expressiva gravidade da conduta e a necessidade de que a reparação seja fixada em montante tal que surta efeito pedagógico no patrimônio da empresa.

Condições degradantes

Recrutados nas pequenas cidades de Bela Vista e Jardim, no interior de Mato Grosso do Sul, e em Bella Vista Norte, no Paraguai, os trabalhadores passaram a viver uma realidade degradante de falta de condições básicas de higiene e segurança. Para completar, ficou ajustado o pagamento de parcos R$ 60 por dia pelo labor exercido de segunda-feira a sábado, das 5h30 às 11h e das 13h às 16h30, que deveriam ser acertados ao final do mês.

No processo, o procurador Odracir Hecht detalha as condições precárias e aviltantes, às quais o grupo era submetido. “Os trabalhadores resgatados, entre eles menores de idade, foram forçados a viver em barracos de lona, numa estrutura totalmente improvisada em um curral, dormindo em camas feitas com tábuas e fazendo suas necessidades fisiológicas num buraco, ou então no mato, não tendo ainda acesso a qualquer material de prestação de primeiros socorros, entre outras irregularidades”, descreve em alusão ao meio ambiente laboral.

Lista de obrigações

A ação civil pública, cumulada com ação civil coletiva, tem por finalidade a condenação de uma agropecuarista ao cumprimento de 21 obrigações de pagar, de fazer, de não fazer e de indenizar, fixadas de acordo com as particularidades de cada irregularidade identificada por peritos do MPT-MS e por auditores-fiscais que, depois, lavraram autos de infração em face da empregadora.

Nas inspeções, ficou evidenciada a conduta da ré em violar diversas normas de meio ambiente do trabalho, mantendo empregados sob condições análogas à de escravo, além do inadimplemento de verbas rescisórias e do descumprimento de obrigações administrativas previstas em lei, como admitir empregado sem o respectivo registro do contrato em livro, ficha ou sistema eletrônico competente; deixar de fornecer equipamentos de proteção individual; não disponibilizar alojamentos nem instalações sanitárias aos trabalhadores; deixar de depositar mensalmente o percentual referente ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS); manter empregado menor de 16 anos em atividades alheias à de aprendizagem e menor de 18 anos em serviço insalubre; entre outras ilicitudes.

Antes de propor a ação, o MPT e a Superintendência Regional do Trabalho, em tratativas com o advogado da agropecuarista, buscaram viabilizar o pagamento voluntário das verbas rescisórias devidas. Porém, as negociações restaram frustradas, já que, apesar de notificada e ciente dos trâmites investigatórios, a ré não compareceu à audiência administrativa designada pelo MPT, assim como não quitou os valores apurados pela fiscalização.

Persistência

Marcado pela pandemia do novo coronavírus, o ano de 2020 impôs mudanças nas relações e modalidades de labor, como o home office e a redução de jornada. No entanto, uma triste realidade permaneceu: o trabalho análogo à de escravo. Somente em 2020, o MPT-MS instaurou procedimentos motivados por operações conjuntas de resgate a 63 trabalhadores que se encontravam em condições degradantes, todas ocorridas na zona rural do estado.

O número de resgates é 46% superior ao de 2019, quando 43 trabalhadores foram flagrados nessas condições, em seis propriedades rurais. As operações foram realizadas com a participação de auditores-fiscais da Superintendência Regional do Trabalho, representantes da Polícia Federal, Polícia Civil, Polícia Militar Ambiental e Ministério Público Estadual.

No ano passado, o MPT-MS celebrou cinco termos de ajuste de conduta com empregadores que se comprometeram a corrigir irregularidades vinculadas ao trabalho análogo à de escravo, ajuizou oito ações civis públicas e emitiu 182 notificações, ofícios e requisições e 348 despachos relacionados ao tema.

Escravidão moderna

Até o século XIX, pelourinhos, açoites, grilhões estavam intimamente associados à figura do trabalhador escravo. Chegado o século XXI, os flagelos físicos não mais servem como parâmetros para identificar a escravidão. Agora, o indivíduo tem sua autonomia restringida por circunstâncias de trabalho que, de tão humilhantes, suprimem sua dignidade enquanto pessoa.

Em Mato Grosso do Sul, a escravidão moderna se concentra no meio rural e pode ser reconhecida quando constatada a submissão a trabalhos forçados, a jornadas exaustivas, a condições degradantes de trabalho ou a servidões por dívida. Trata-se de formas de exploração que violentam a própria natureza humana dos trabalhadores, ao subtraírem os mais básicos direitos, como alimentação, higiene e exercício de um trabalho digno.

Referente ao procedimento ACPCiv-0024057-25.2021.5.24.0076