Em março de 2018, pré-candidato à presidência da República, Jair Bolsonaro visitou a ilha de Taiwan, território autônomo considerado pela China uma província rebelde.
O tour pela Ásia, feito com os filhos, gerou reação da embaixada chinesa em Brasília, que, em uma carta, afirmou ver a visita com “profunda preocupação e indignação”.
“Não só afronta a soberania e integridade territorial da China, como também causa eventuais turbulências na Parceria Estratégica Global China-Brasil, na qual o intercâmbio partidário exerce um papel imprescindível.”
Não seria a primeira nem a última provocação.
Alguns meses depois, Bolsonaro criticou a relação comercial entre o Brasil e o país asiático, acusando a China de estar tentando comprar o país, e não do Brasil.
Dois anos depois, entretanto, a fatia chinesa nas exportações brasileiras se ampliou e as empresas do país asiático continuam investindo no país, como apontam os dados compilados pela Sobeet (Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e da Globalização Econômica) para a BBC News Brasil.
A reportagem conversou com sinólogos, especialistas em relações internacionais, um economista e um ex-embaixador brasileiro na China para entender qual o saldo desses dois anos de relações bilaterais sob Bolsonaro e o que se pode esperar do próximo biênio.
Uma montanha-russa diplomática
Diante do discurso de campanha hostil, o governo Bolsonaro começou com muitas incertezas sobre a postura em relação à China, relembra o diplomata Marcos Caramuru, embaixador do Brasil na China entre 2016 e 2018.
Passado um momento inicial de apreensão, contudo, veio uma relativa “calmaria”, com a visita do vice Hamilton Mourão — a primeira oficial — e a reativação da Cosban (Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação), fórum de negociação comercial capitaneado pelos vices de ambos os países e que estava paralisada desde 2015.
O próprio Bolsonaro foi à China em outubro de 2019 e, no mês seguinte, o presidente chinês, Xi Jinping, retribuiu a visita — “um momento importante, em que algumas arestas foram esclarecidas”.
O ano virou, entretanto, e dois eventos fizeram com que o caldo entornasse novamente.
Com as eleições americanas no horizonte e o alinhamento do Brasil à política externa dos Estados Unidos, diz Caramuru, o presidente e a diplomacia brasileira voltaram a usar uma retórica agressiva contra a China — intensificada com a eclosão da pandemia de covid-19.
“O governo chinês percebe que a ala mais radical começa a ter domínio quase total da política externa brasileira”, diz Evandro Menezes, coordenador do Núcleo de Estudos Brasil-China da FGV Direito-Rio, professor da UFF (Universidade Federal Fluminense) e consultor do China Desk do Veirano Advogados.
O especialista lembra do “mal estar” causado por um tuíte do deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, ainda em março. Em uma comparação entre o momento atual e a tragédia nuclear de Chernobyl na década de 1980, o post insinuava que a China seria responsável pela pandemia.
“Suas palavras são extremamente irresponsáveis e nos soam familiares. Aconselhamos que não corra para ser o porta-voz dos EUA no Brasil”, dizia, em resposta, o perfil da embaixada da China na mesma rede social.
O então ministro da Educação, Abraham Weintraub, também fez insinuações nesse sentido — o que motivou a abertura de um inquérito no STF (Supremo Tribunal Federal) a pedido da PGR (Procuradoria Geral da República) para apurar suposto crime de racismo.
Daí em diante, as tensões se mantiveram, até o episódio mais recente, em novembro, em que o presidente afirmou que a China precisaria mais do Brasil do que o contrário e Eduardo Bolsonaro defendeu uma “aliança global para um 5G seguro, sem espionagem da China”.
Mais uma vez, a embaixada respondeu o deputado pelo Twitter, e foi admoestado pelo chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, e pelo vice-presidente, que afirmaram que o país deveria ter usado “os canais diplomáticos” para se manifestar.
Recorde de exportações e mais investimento direto
Apesar da relação desarmônica, China e Brasil continuaram fazendo negócios nesses últimos dois anos.
Em 2020, a fatia da participação chinesa nas exportações brasileiras, aliás, bateu recorde e chegou a 34,1%, considerando os dados em valor acumulados até novembro. É o maior percentual desde 1997, quando começa a série do antigo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Mdic), incorporado à pasta da Economia.
Parte do desempenho, pondera Caramuru, é reflexo da guerra comercial travada entre EUA e China, que acabou abrindo espaço para que o Brasil vendesse mais soja para o país asiático.
Para além da balança comercial, os investimentos diretos também se ampliaram. É o que sinalizam dados da Secretaria de Comércio Exterior (antigo Mdic) sobre anúncios de novos negócios e parcerias compilados pelo economista Luís Afonso Lima, presidente da Sobeet.
As estatísticas oficiais consolidadas sobre o investimento direto por país no Brasil, divulgadas pelo Banco Central, não refletem perfeitamente a situação. O registro por país nas estatísticas do balanço de pagamentos considera a origem do capital, e não a nacionalidade do controlador do grupo que está fazendo o investimento. Isso acaba excluindo o investimento de uma empresa chinesa feita a partir de outra localidade, como os Países Baixos, onde pode estar instalada por razões tributárias.
Os dados compilados pela secretaria, por sua vez, tentam contornar esse problema fazendo um apanhado dos comunicados emitidos pelas próprias companhias e por notícias na imprensa. Por conta disso, eles não captam eventuais mudanças nos valores ou mesmo desistências — mas ainda assim são um sinalizador de tendência importante, especialmente diante da escassez de informações consolidadas.
De acordo com eles, em 2019 os investimentos anunciados por empresas chinesas no Brasil cresceram 30% em relação ao ano anterior, totalizando US$ 19,6 bilhões.
Lima chama atenção para o fato de que os dados não apenas indicam alta dos investimentos, mas também uma diversificação. Além de eletricidade e gás e indústria de transformação, que aparecem em praticamente todos os anos anteriores, há investimentos relevantes em “atividades profissionais, científicas e técnicas” e outros segmentos.
“Costumava-se associar esses investimentos (chineses) à pauta de exportação, ao Brasil como fornecedor de produtos primários. Mas, quando a gente olha com uma lupa, percebe que não é verdade. Houve vários anúncios na área de tecnologia, informática, na indústria mecânica”, destaca o economista.
Jordy Pasa, mestre em Política Chinesa pela Universidade Renmin e editor sênior da plataforma Shumian, que reúne informações e análises de sinólogos brasileiros, destaca que, apesar de haver de fato uma diversificação, o perfil do investimento chinês no Brasil ainda é semelhante ao do restante da América Latina: é realizado por grandes corporações estatais engajadas com atividades de baixa e média intensidade tecnológica.
Aí entram o agronegócio e os setores de infraestrutura, mineração e geração e distribuição de energia elétrica.
“Qualificar os investimentos da China por aqui, aliás, deveria ser prioridade em Brasília”, diz.
Essa também é a avaliação de Evandro Menezes, que acredita que o Brasil vem perdendo uma oportunidade de atrair investimentos chineses em segmentos mais intensivos em tecnologia.
No recém-aprovado plano quinquenal chinês — o 14º, que estabelece as diretrizes econômicas que vão nortear o período entre 2021 e 2025 —, a inovação é um dos grandes destaques, diz o professor. “A China vai investir muito em inovação, em ganho de eficiência.”
Os limites da ‘fartura’ chinesa
Outra tendência que aparece no plano e em relatórios do Partido Comunista Chinês é a concentração de parte dos investimentos dentro da própria China, na esteira do fortalecimento do mercado interno, diz Túlio Cariello, coordenador de análise e pesquisa do CEBC (Conselho Empresarial Brasil-China).
“Facilitando inclusive investimentos de fora para dentro”, diz ele.
Isso pode significar, no médio prazo, menos capital chinês disponível. Em um cenário em que os investimentos externos do país passam a ser mais seletivos, uma eventual indisposição com o Brasil pode levá-los a dar preferência a outros mercados.
Pelas próprias dimensões do comércio entre os dois países, um esvaziamento brusco nas relações com o Brasil é improvável, analisa Letícia Tancredi, mestre em História, Política e Bens Culturais pela FGV e editora da plataforma Shumian.
“Não significa que a China deixará de comprar soja do Brasil, mas que vai passar a comprar uma parte maior da Argentina como prevenção”, ela exemplifica.
E não é só da Argentina. A China tem comprado cada vez mais soja de países como Uruguai e Canadá, com um esforço crescente para expandir o leque de fornecedores, diz Lívia Costa, que também é editora da plataforma e mestre em Estudos Chineses pela Yenching Academy da Universidade de Pequim.
“Com o crescente escrutínio sobre o desmatamento da Amazônia, ou o Brasil dá mais sinais de que a nossa soja, por exemplo, não é oriunda de zonas de desmatamento, ou vamos passar por tempos difíceis nos próximos 10-20 anos”, ela avalia.
Para além da relação bilateral, Tacredi elenca outro possível efeito adverso de médio e longo prazo: a perda de espaço para a China dentro da própria América Latina.
Nesse sentido, ela lembra que, recentemente, o país asiático tornou-se o maior parceiro comercial de Chile e Argentina, ultrapassando o Brasil neste último.
“Isso significa que perdemos espaço no mercado argentino, que é um destino estratégico para as exportações brasileiras, principalmente de industrializados.”
“Em período de instabilidade econômica e com empresas já enfrentando dificuldades devido à pandemia, abrir espaço para essa intensificação nas relações China-América Latina por conta de diferenças ideológicas é um tiro no pé”, acrescenta.
O embaixador Marcos Caramuru pontua que, de maneira geral, os chineses têm a visão de que a política externa brasileira hoje mimetiza muito a americana e reflete a posição de um grupo minoritário.
“É uma conversa entre eleitores de direita, que tem conexão limitada com o resto da sociedade brasileira, com os que movem a economia, as elites de maneira geral.”
Essa percepção reforça a tendência chinesa de apostar no pragmatismo econômico. Ainda assim, em sua experiência pessoal com empresários e investidores do país, o diplomata diz não ter observado grande impulso para novos negócios.
“Não acho que possa ser interpretado como um esfriamento das relações, mas vejo que existe entre as empresas chinesas um menor encorajamento para investimentos novos.”
Além do Banco dos Brics, uma iniciativa que já vinha sendo costurada em governos anteriores, e da retomada do diálogo da Cosban, o país fez pouco para estreitar as relações com seu principal parceiro comercial, acrescenta Evandro Menezes, da FGV.
Do outro lado, a China fez alguns acenos, como a participação no mega leilão do pré-sal que naufragou em novembro de 2019. Após grande expectativa de participação de empresas estrangeiras, o consórcio entre Petrobras e a chinesa CNODC foi o único a fazer oferta.
Conforme declarou na época o ministro da Economia, Paulo Guedes, a entrada da China no certame atendeu a um pedido feito pelo presidente Bolsonaro.
O grande tema da relação Brasil-China em 2021
Tanto Menezes quanto Caramuru citam o leilão do 5G marcado para 2021 no Brasil como um dos eventos mais importantes no próximo ano no contexto da relação entre os dois países.
Os EUA afirmam que a tecnologia chinesa, das empresas Huawei e ZTE, seria instrumento de espionagem usado pelo Partido Comunista e pedem que o Brasil vete o uso dos produtos pelas companhias de telefonia que vencerem o certame.
A China, por sua vez, nega as acusações e já declarou, por meio de seu embaixador no país, acreditar que o Brasil tomaria uma “decisão racional”, emendando que o leilão serviria para que as empresas chinesas avaliassem a “maturidade” do país.
“O leilão é o definidor do que será a relação Brasil-China nos próximos anos”, diz Menezes.
Caso o país opte por vetar a tecnologia chinesa, diz ele, perde a oportunidade de desenvolver “uma relação de alto perfil”, mais centrada em inovação e tecnologia, os grandes focos do próximo plano quinquenal do país.
“Vamos nos restringir a pequenas ambições”, opina.
O governo não deu uma resposta definitiva sobre o assunto e vinha evitando manifestar-se sobre ele — até o comentário do deputado Eduardo Bolsonaro no Twitter, acusando o uso do 5G por parte da China para fins de espionagem.
Entre a paciência e pragmatismo
Apesar da escalada de tensão e das respostas incisivas do embaixador às provocações nas redes sociais, a China não chegou, no decorrer desses dois anos, a retaliar o Brasil pela diplomacia de hostilidades.
O que tem prevalecido é o conhecido pragmatismo chinês, que dá preferência aos interesses econômicos.
Esse pragmatismo tem sido, entretanto, colocado à prova na esfera da geopolítica regional do país asiático. Após sequências reiteradas de atritos, as relações entre China e Austrália azedaram de vez, a ponto de o governo chinês elevar tarifas de importação de diversos produtos, de carne e vinhos a algodão e carvão.
A Huawei, que viu os produtos relacionados ao 5G banidos do país, anunciou demissões em sua fábrica e cortou investimentos.
Questionado se a Austrália de hoje poderia ser o Brasil de amanhã, Caramuru ressalva que há algumas particularidades na relação entre os dois países, que estão geograficamente próximos.
A escalada de desentendimentos, que incluiu o 5G e um pedido de investigação na OMS sobre a origem do novo coronavírus (sob insinuações de que seria chinesa), envolveu também questões domésticas — acusações de tentativa de interferência chinesa nas eleições australianas, por exemplo.
Menezes cita ainda os comentários de autoridades australianas em relação ao status de Taiwan.
“Todos os países que entrarem nessa discussão vão ter problema”, diz ele, lembrando que a unificação do país é uma das prioridades da China até 2049, quando será comemorado o centenário da revolução comunista.
Jordy Pasa também destaca que o caso da Austrália tem características próprias “e não necessariamente se aplica a nós”, mas pontua que é possível observar “algumas mudanças importantes na maneira como Pequim se engaja com o restante do mundo”.
“Desde uma retórica mais agressiva de Xi Jinping em se tratando de questões como as disputas no Mar do Sul da China até a postura mais ativa e por vezes até mesmo provocadora dos diplomatas do país, os próprios chineses vêm desconstruindo, em certa medida, o entendimento que por muito tempo houve de sua política externa como pragmática.”
Para Lívia Costa, é difícil imaginar uma reação chinesa semelhante à que acontece na Austrália.
Ela poderia ser, entretanto, mais sutil: “Precisamos prestar especial atenção à exportação de produtos congelados que poderiam ser facilmente contaminados com o novo coronavírus, para evitar possíveis críticas de que estejam impróprios para o consumo”.
“A retaliação poderia vir daí. Estamos cutucando o dragão com vara curta.”
Essa possível inflexão se soma a outro ingrediente importante: a saída de Donald Trump da Casa Branca.
Ainda que não se espere uma guinada radical da postura americana em relação à China, com Joe Biden há uma expectativa de maior estabilidade e de volta ao multilateralismo, com maior diálogo.
Nesse cenário, diz Letícia Tancredi, o Brasil perde margem de manobra para “sustentar o tipo de embate que vem sendo empregado com a China no nível diplomático”.
“Nosso isolamento em arenas multilaterais será maior sem a aliança com o governo Trump, e é insustentável manter o tom ofensivo com dois dos nossos maiores parceiros comerciais em um contexto de dificuldades econômicas. Alguma flexibilidade na política externa do governo Bolsonaro será inevitável, resta saber para qual direção.”
“A questão que permanece”, acrescenta Pasa, “é se também vamos mudar de tom, adotando uma abordagem que, ainda que substancialmente parecida, seja ao menos mais estável e tenha formato mais polido, ou se vamos insistir no conspiracionismo e nas ofensas abertas da era Trump”.
“Se for o caso, podemos acabar isolados e, portanto, mais vulneráveis caso se esgote o pragmatismo chinês diante das provocações de Brasília.”
Fonte: BBC